O fim do parcelado sem juros?
Ao defender o fim, ou a limitação, do parcelamento sem juros no cartão de crédito, o atual presidente do BC perdeu duas oportunidades: a de analisar melhor a questão antes de se manifestar sobre ela, e, pelo menos uma vez na história do país, a de não buscar penalizar o agente mais vulnerável do mercado: o consumidor
“Infelizmente, o Brasil não perde uma oportunidade de perder oportunidades”. Essa frase é de autoria de Roberto Campos, um dos mais brilhantes economistas e homens públicos que o país já teve e, como se vê, também dono de refinado humor. Recentemente, mais duas oportunidades foram perdidas e, por ironia do destino, pelo próprio neto do autor da frase.
Ao defender o fim, ou a limitação, do parcelamento sem juros no cartão de crédito, Roberto Campos Neto, atual presidente do Banco Central, instituição que, por sinal, foi idealizada pelo seu avô, perdeu duas oportunidades: a de analisar melhor a questão do parcelamento sem juros antes de se manifestar sobre ela, e, pelo menos uma vez na história do país, a de não buscar penalizar o agente mais vulnerável do mercado, ou seja, o consumidor.
A recente pandemia do Coronavírus, a mais severa enfrentada pela humanidade nos últimos 100 anos, bem como a quase concomitante invasão da Ucrânia, deflagrando a primeira guerra em território europeu nas últimas sete décadas, desestabilizaram as cadeias de valor em todo o mundo. A soma de desabastecimentos pontuais com a busca por resiliência produtiva provocou a duplicação, ou mesmo triplicação, de pontos de processamento ou produção de insumos e produtos de natureza estratégica para países e empresas globais, acelerando as dificuldades do comércio multilateral, que já se faziam presentes há pelo menos uma década, e iniciando um processo inflacionário global.
Se nos chamados países desenvolvidos, os níveis de inflação tornaram-se assustadores, no Brasil soma-se o trauma de um passado ainda recente, no qual ela flagelava a esmagadora maioria dos cidadãos. A resposta padrão de bancos centrais a esse estado de coisas foi a elevação das taxas de juros da economia, partindo da hipótese de que se tratava, ao menos parcialmente, de uma “inflação de demanda” e não apenas de oferta.
Aqui não foi diferente e a ação do Banco Central contribuiu n para a reversão do quadro inflacionário. A questão era saber qual o momento de começar a promover a diminuição da taxa básica de juros (Selic), e os debates acalorados entre o poder executivo e a nossa autoridade monetária autônoma são de conhecimento geral.
Iniciado o processo de redução, evidenciou-se que “outros juros” também agravam a situação da economia nacional, destacando-se, evidentemente, os aviltantes juros do crédito rotativo, cuja taxa anual média se aproxima dos 440%. Embora, desde 2017, essa modalidade esteja limitada ao período de um mês, findo o qual os bancos têm de oferecer outras opções ao consumidor, o rotativo ainda contribui imensamente para o superendividamento da população. Assim, a sua extinção, ou severa limitação, é bem-vinda e há muito aguardada. Porém, colocar, no mesmo pacote, o fim ou a limitação do chamado parcelamento sem juros, é de um descabimento agudo.
O parcelamento sem juros é uma modalidade que, na prática, veio substituir o tradicional crediário, no qual as operações de compra a prazo se davam diretamente nos estabelecimentos varejistas. Com a complexidade crescente das operações de financiamento do varejo, incluindo a antecipação de recebíveis, e o desejo de análises de crédito mais refinadas, foi natural – no sentido de tratar-se de um mecanismo espontâneo de mercado – que o parcelamento migrasse para esse importante instrumento que é o cartão de crédito. Algumas lojas, inclusive, os personalizam para melhor fidelizar os seus clientes, sendo que a maioria simplesmente trabalha com os produtos tradicionais das bandeiras disponíveis e seus diversos emissores. Trata-se, assim, de um fundamental instrumento de compra e também de planejamento financeiro para os consumidores.
O conhecido superendividamento dos brasileiros não decorre, de forma alguma, dessa maneira de comprar. Muito pelo contrário, pois ao dividir em várias parcelas as suas aquisições de maior valor, os consumidores “encaixam” mais facilmente as parcelas de acordo com sua renda mensal. E sobre as eventuais parcelas em atraso, incidem, evidentemente, encargos menores dos que incidiriam sobre compras em uma única parcela.
Assim, o eventual fim, ou aumento das dificuldades, por meio de tarifas que possam ser criadas ou correlação entre valores de compra e número de parcelas permitidas, causará grande prejuízo aos consumidores, além, evidentemente, de prejudicar o varejo como um todo, pois este tem no parcelamento um instrumento estratégico para vendas e promoções. Além disso, não identificamos qualquer relação evidente entre o fim do parcelamento e a diminuição geral das taxas de juros da economia. Sinceramente, estou ainda à espera de alguma demonstração econométrica nesse sentido, pois tal ilação não se sustenta nem na qualidade de hipótese.
Tramitou no Congresso Nacional um projeto de lei de conversão (PL 2.685/2022), da Medida Provisória conhecida como “Desenrola Brasil”. Após aprovação na Câmara, perto do final do seu prazo de validade, não houve tempo para debates mais aprofundados no Senado, tendo sido por ele aprovado, sem emendas, ontem, 2 de outubro. A regulamentação será por meio de Decreto do Executivo ou por Portaria das autoridades fazendária ou monetária, recolocando, neste caso, a bola no campo do presidente do BC.
Não custa, portanto, lembrar que a defesa do consumidor é um princípio da ordem econômica, conforme o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal e que a lei complementar a ela em matéria consumerista, ou seja, o Código de Defesa do Consumidor, reconhece que esse agente da economia é o mais vulnerável do mercado, tendo o Estado – seja ele legislador ou executor de normas – o dever de protegê-lo, inclusive contra atitudes do próprio Estado.
Não é razoável que eventuais regulações do sistema financeiro, que possam derivar da discussão do PL ou que venham a ser tomadas diretamente, ex-officio, por autoridades monetárias e fiscais, venham a prejudicar ainda mais os consumidores, especialmente quando o momento é justamente de ampliar a facilitação ao crédito. Em meio a essa chuva de disparates, as palavras mais sensatas vieram do Ministro da Fazenda. Como declarou Fernando Haddad, a solução para o equacionamento da absurda taxa de juros do rotativo não pode prejudicar o consumidor que está pagando suas contas em dia.
Henrique Lian é Diretor de Relações Institucionais e Mídia da PROTESTE